Trecho I
Trecho I

Há várias formas de falar de leitura. Ema delas, a que escolhi para nortear este passeio, consiste no diálogo entre leitura e escrita.

            Tal comparação por sua vez, pode ser conduzida de maneiras diversas. Não é, aliás, uma abordagem inédita, embora, creio, ainda oportuna. Minha contribuição ao que já foi pensado a respeito foi a de selecionar certos textos que falam sobre o assunto — ainda que não de modo explícito, ainda que apenas indiretamente — e, comentando- os, montar uma articulação que deixe entrever melhor o conceito de leitura, tão fugidio.

            O passeio pode parecer às vezes um tanto sinuoso. Trata-se de um bosque de caminhos que se cruzam e se bifurcam, e, para conhecê-lo por inteiro, em todos os seus descampados e nas inesperadas clareiras, seria necessário o tempo de um imortal, de que não dispomos.

(...)

            Não se lêem apenas palavras, sabemos. Observar com atenção um prédio antigo, por exemplo, tentar entender suas linhas, suas cores, sua dimensão, arriscar uma data provável de construção, nomear o prédio com um estilo, um recorte na tradição arquitetônica, supor qual o motivo de ter sido construído ali e não em outro lugar, relacioná-lo com as outras construções em volta, com a arquitetura do bairro e da cidade, tudo isso é ler o prédio.

            Pode-se ler um romance ou um poema tanto quanto se pode ler no rosto de alguém um traço de dor, um sorriso, um modo de ajeitar o cabelo, ou como se pode ler uma roupa, o céu, um jardim. E até mesmo uma onda do mar pode ser lida, como nos ensina Palomar, o personagem de Ítalo Calvino.

            É de Calvino, aliás, uma deliciosa história de confronto entre a leitura do livro e a leitura do que está fora do livro. Em “A aventura de um leitor”,  um dos contos reunidos no volume “Os amores difíceis”, temos o personagem Amedeo, um leitor inveterado que chega a uma praia deserta com seu livro debaixo do braço e lá encontra uma mulher.

            Dividido entre a leitura do romance e a leitura do corpo da mulher Amedeo ora tem o olhos grudados no livro ora os levanta na direção daquela que se apresenta como um outro texto de sedução:

 

                        o olho de Amedeo estava atraído por ela. Reparou que, ao ler, cada vez com mais freqüência suspendia o olhar do 1ivro e o pousava no ar, e este era aquele que estava no meio entre aquela mulher e ele.

O rosto (estava estendida na borda em declive, num colchãozinho de borracha, e Amedeo a cada virada de pupila lhe via as pernas não fornidas mas harmoniosas, o ventre perfeitamente liso, o seio pequeno de modo talvez não desagradável mas provavelmente um pouco caído, nos ombros um pouco de ossos demais e também no pescoço e nos braços, e o rosto mascarado pelos óculos escuros e pela aba do chapéu de palha) era levemente marcado, vivo, cúmplice e irônico. O Amedeo classificou o tipo: mulher independente, em férias sozinha, que em vez dos lugares cheios de gente prefere o rochedo mais deserto, e gosta de deixar-se estar ali a ficar preta como carvão; avaliou a porção de preguiçosa sensualidade e de insatisfação crônica que havia nela.

 

            Amedeo passará a história toda em dúvida: o livro ou a mulher, e acaba ficando com os dois, ou, de certo modo, nem com um nem com outra.

            É de se registrar, a propósito da leitura do texto não verbal, a frase de Guimarães Rosa, pescada em “Aletria e hermenêutica”, um dos quatro prefácios de Tutaméia: “A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso”.